quarta-feira, 19 de julho de 2017

O hermafroditismo

E sem explicações, novamente aconteceu. Mais dois filhos de produção independente, como eufemisticamente se costuma dizer. 
Não querendo julgar a pessoa que Cristiano Ronaldo, é, que de facto desconheço, e por isso só poderia aventurar-me em conjecturas, que as há em abundância (fosse em seu benefício ou não) se por aí enveredasse, tenho ainda assim algo a dizer sobre esta notícia, que não me deixa indiferente. 
Admiro o atleta, pela sua capacidade de trabalho e tenacidade para alcançar o nível que alcançou, sendo um orgulho para os portugueses, e um modelo que inspira, porém nesta questão da paternidade, a minha admiração retraí-se.

Eu compreendo a pressão do relógio biológico, compreendo que sendo homem e desejando muito ser pai, a situação é bastante mais complicada de resolver, do que quando se é mulher, com a mesma vontade. Consigo imaginar a frustração que se deve sentir, com a passagem dos anos, e o desejo da paternidade latente por realizar. Creio que consigo sentir a ansiedade. E por isso, de certa forma, consigo entender a tentação de entrar por um caminho enviesado. 

Se a medicina está suficientemente evoluída para proporcionar a realização deste desejo, na falta do habitual pai e mãe, se existem condições financeiras que proporcionam a concretização desta vontade, então, por que não? 
Talvez tenha sido isso que o Cristiano Ronaldo pensou. E outros como ele, que segundo as notícias também recorreram a barrigas de aluguer. Uns porque são casais homossexuais, outros por questões de saúde, ou até profissionais. 
Portanto, se existem os meios, a legitimação do acto é automática? Seria simples demais se assim fosse. Um filho gera-se com a união do homem e da mulher, e se a participação desta é apenas como doadora de óvulos, e receptáculo de um embrião, não havendo amor, desejo, ou qualquer outra emoção humana, senão motivação económica, falha à partida a ideia de concepção que todas as pessoas gostam de saber estar na sua pré-existência. Ninguém aprecia ter sido um acidente; ninguém entende a rejeição; nenhum ser humano fica indiferente perante a falta de desejo, de qualquer um dos pais.

Passa, ou passou, num canal de t.v. uma série sobre pessoas adoptadas que buscam as suas famílias biológicas. Por mais amadas e bem tratadas que tenham sido por quem as adoptou, a alma insta-os a procurarem as suas raízes. Querem saber porque foram "rejeitados", querem ficar cara a cara com as suas mães. E normalmente, é com as mães que desejam encontrar-se, e confrontar-se. Na grande maioria dos casos de adopção, os adoptados descobrem que não houve rejeição, apenas falta de meios para serem criados dignamente, e a justificação de que sendo adoptados teriam uma melhor educação, uma vida mais fácil; e isto é uma escolha resultante de amor. E ainda assim, compreendendo tudo isso, sentem-se rejeitados. Precisam de ajuda, de terapia, de tempo, para desconstruir ideias nefastas, e se reconstruirem como seres humanos equilibrados e saudáveis. Explica-se isto com a ligação superior à mãe biológica, que mesmo se afastando nunca será esquecida; mesmo sendo muito bem substituída, nunca o será realmente. 

Há, relativamente a este fenómeno das barrigas de aluguer, uma questão assaz complexa que implica a ética num sentido filosófico, e a ética, no sentido pragmático. Será correcto pagar a um ser humano para gerar uma vida, e dela abdicar totalmente, entregando-a como qualquer outra mercadoria? Será aceitável que as mulheres se tornem  máquinas gestacionais, ao dispor de quem tem dinheiro?
Em concreto, em que condições estão a ser feitas estas "transacções"? Sabe-se que existem fábricas de barrigas de aluguer, onde mulheres estão prisioneiras, ou reféns, como gado nos estábulos. 
Uma corrente feminista afirma que a misoginia não é senão a inveja do útero da mulher, e neste caso, a ciência e seus acólitos conseguem subverter a sacralidade da vida, em algo sujo e descartável, como uma execrável inveja manifestada. 
Pensar que a humanidade chegou a este ponto no séc. XXI, faz-me questionar o sentido da nossa evolução.

Portanto, um dia, quando estes filhos paridos por um, tiverem idade de se questionar, e começarem a questionar o pai sobre as suas mães, que resposta, capaz de os contentar, lhes será dada? Francamente, não me ocorre nada suficientemente forte que responda sem magoar, e pelo contrário, consiga apaziguar. Suspeito que não seja suficiente, saber-se filho de um intenso desejo unilateral. Não haverá amor bastante que colmate a ausência da mãe; amor de avó, por maior que seja, continua a ser amor de avó. Saber-se fruto de uma transacção comercial, é bem capaz de ser acima de tudo, destruidor.
Prevejo um preço alto a pagar, tanto para o pai, como para os filhos. E desta vez, não haverá dinheiro suficiente para comprar compreensão, tranquilidade, aceitação, e consciências. 

Como tudo isto se faz na base da liberdade, e da modernidade que tudo compreende e aceita, a avaliação moral da questão perde pertinência. Não há lugar para debates, reflexão que sirva de bússola, ou resposta a questionamentos. Há apenas, aceitação de uma nova realidade, filhos paridos por um, tal qual os hermafroditas, no reino animal.